sábado, novembro 27, 2004

Não foi, mas poderia ter sido... episódio 01

Os saltos-altos de Dona Isadora me guiavam como um sonar. Eu sabia em qual cômodo do apartamento ela estava só de acompanhar seu deslocar pelo andar de cima. Essa vigília se transformou em uma obsessão, até que descobri uma coincidência irresistível nos nossos horários. Saíamos simultâneamente de manhã, eu para a escola e ela, acredito, para o trabalho. Logicamente comecei a ajustar meu tempo ao seu, forçando encontros diários no elevador, como se o acaso fosse sistemático.

Ela sequer me olhava, quanto mais dizer "bom dia". Eu então nem conseguia tirar os olhos do tapete. Ficava tímido até para apertar o botão térreo. Confesso que discretamente olhava para suas pernas, sempre embrulhadas a vacuo por um par de meias pretas transparentes. Me torturava uma listra mais escura que subia do calcanhar até dentro de sua saia. Perifericamente eu percebia seus cabelos negros armados de laquê e o excesso de pintura para aquela hora do dia. O cheiro de seu perfume francês anos 50 disputava, aos tapas, com sua murrinha de tabaco o pouco ar do recinto móvel. E isso me dava uma enxaqueca confortável. Mas Dona Isadora tinha presença. Um par de seios sophialoren recheando a camisa acetinada de tom roxo e botões de madrepérola.

Um dia ela falou comigo com a voz de uma legião de demônios roucos.

– Garoto, qual teu nome? Todo dia te encontro nesse elevador.
– Sou seu vizinho do andar de baixo, do 504.
– Mas qual é a sua graça?
– A graça é toda sua.

Respondi cometendo uma das maiores gafes da minha vida. Ela deu uma gargalhada sonora e assim que saiu do elevador já foi sacando uma carteira de cigarros. No caminho da rua insistiu na pergunta que o nervosismo me surdeara.

– Qual teu nome, meu filho?
– Mario, senhora.
– Até amanhã, Mario.
– Até amanhã.

Ela deu uma piscadela e sorriu com somente um dos cantos da boca. Segui até o ponto do ônibus com as pernas trêmulas, a garganta seca e uma história que deixaria todos os meus colegas morrendo de inveja. Desculpem o clichê, mas a primeira vez é inesquecível.

quinta-feira, novembro 25, 2004

Ventos, flores e pedalinho

Um sopro, dos mais lívidos, tocou-me a fronte. Desses raros de se sentir, porque não somos atentos aos ventos e seus caminhos. Se cada homem é uma cidade em sí, algumas esquinas – falo de encontros – apresentam uma leveza insustentável, como no livro de Kundera. Frágeis como bolas de sabão, da mesma forma, vão-se em brisas. Guardem no coração, pois é impossível aprisionar forças da natureza. Sabendo que o ar escapa pelos dedos, ainda joguei a peneira sobre o redemoinho, como se fosse verdade a lenda de prender o Saci. Bem, eu tentei:

"(...) hoje ví flores com cara de cachorro-sem-dono, loucas por uma dona que as bem cuidasse. Achei que tuas brisas as fariam bem, então tomei a liberdade de te dar de presente para elas que, certamente, ficaram risonhas de orelha a orelha. Por outro lado, confesso que pensei que elas me passariam um e mail ou telefonariam para dizer se tinham gostado de tí. Mas bem sei que flores são muito ocupadas. Por precaução, já alertei aos cactos de minha casa que brisas são incertas; chegam quando menos se espera e vão nos deixando um alento nos cabelos. E algumas são boas demais, mesmo que somente nas lembranças. Porém, é certo que ventanias surgem de marolas de vento que, em determinado momento, enchem as velas de barcos modorrentos, fazendo até galeões velhos cruzarem oceanos. Enfim, flores e cactos estão alertas à imprevisibilidade do tempo. A mim, tem me dado prazer pensar na janela aberta que pode me trazer algum dos teus ares, sejam vendavais ou tais brisas. Mas não poderia deixar de te agradecer por elas (...)"

Pois bem. Como previa, os ventos cessaram. Mas tudo bem. Ao menos levo um sorriso no rosto, enquanto faço andar o pedalinho.

domingo, novembro 14, 2004

Uma lembrança de chuva


Uma história para quem não tem medo de água fria, textos grandes e mulheres complicadas.

Ela entrou no carro com jeans apertados. Uma camisa branca de botão e, por baixo, uma malha hering. Pôs o cinto de segurança, atrapalhando o beijo no rosto. Seus cabelos soltos, ainda molhados, cheiravam a condicionador das Lojas Americanas. Seu batom escuro lhe dava um ar vampiresco que me abriu um rombo no estômago. Mulheres que me interessam me causam uma gastrite irresistível. Casaria naquele momento, diante de padre e testemunhas e receberia os convidados para os cumprimentos e, por perversão, chamaria seu namorado para padrinho. Acabamos tomando o rumo do jornal.

- Tá vestida de menino hoje?
- É. Em dias chuvosos me visto sempre assim. Não gostou?
- Gostei muito. Jeans apertados me dão tesão.
- Eu sei. Eu já percebí que você olha pra toda mulher que entra na redação com calça apertada. Você é muito óbvio.
- Você hoje está uma chata. O que aconteceu? Você não parecia muito bem quando me telefonou. Com essa chuva vamos chegar atrasados ao trabalho.
- Entra aqui à direita. Cara, eu estou bem. Só queria bater papo-furado e aproveitar tua carona, só isso. Que música de velho é essa?
- Summertime, com o Sam Cooke. Essa versão é boa demais.
- Eu tô vendo que você gosta. Já tocou três vezes. A fita inteira é com essa música?
- É sim. Gosto de gravar várias vezes na mesma fita para poder ouvir até enjoar. O que você gosta de escutar?
- Gosto de escutar sacanagem no pé do ouvido. Tô brincando... não fica sem graça, não... eu escuto de tudo. Só não gosto de pagode e axé music. Por isso que não vou em churrasco. Meu namorado é que adora essas porcarias. É bundinha pra cá, a dança da galinha pra lá... um saco!
- E vocês voltaram? Vão voltar?
- Não sei. Eu quero me casar. Nós já namoramos muito tempo e quero resolver logo essa situação.
- E você vai casar só pra resolver uma situação?
- O que você quer que eu faça? Acabo ficando pra titia... Você casa comigo?
- Agora! Se você quiser... com padre, testemunhas e depois ainda aperto a mão de todos os convidados. E chamaria teu namorado pra ser meu padrinho.
- Mentiroso. Vocês, homens, mentem muito.

Com todos os sinais fechados, em meia hora não havíamos chegado ao final da primeira rua. A chuva era murrinha e o tempo esfriava. Me pediu para trocar a fita. Permiti, logicamente. Resolveu sintonizar uma estação de rádio. "Música de elevador", definiu. Passaram-se cinco minutos e começou a tocar Summertime, exatamente na voz de Sam Cooke. Rimos juntos da coincidência, como somente velhos amigos fazem. Em seguida, outra canção triste como a anterior. Calou-se alguns segundos e começou a chorar, borrando a pintura do olho e avermelhando o nariz. Coloquei a mão direita sobre sua perna, abandonando o câmbio do carro. Não falei nada ou olhei para seu rosto. Só escutávamos o barulho da borracha que se esfregava irritante no pára-brisas. Espalmou sua mão sobre a minha e nossos dedos se entrelaçaram em abraços. Começamos a brincar, um tentando prender o polegar do outro. Sorríamos quando alguém vencia o jogo.

- Você é bobo. Um bobalhão.
- Você também é uma boboca.
- Você engordou, sabia?
- Uns dois quilos, eu acho. Me beija a boca?
- Não posso. Sou sua amiga e amigos não se beijam na boca. Olha, andou o trânsito...

A locutora da rádio informou, com voz de veludo: "(...)quatro e vinte. Você escutou, na Antena Um Fm, Vendaval com Ed Motta, Summertime com Sam Cooke, For my Lover com Tracy Chapman e Coisas da Vida com Rita Lee. A cada hora, cinqüenta e quatro minutos de música".

O céu estava escuro como noite. O jornal, próximo. Tirou toda a maquiagem e planejou dizer que estava gripada, caso alguém perguntasse de sua cara inchada. Parei o carro na Rua Irineu Marinho, esperando uma vaga para estacionar. Passaram-se mais alguns minutos até que perguntasse:

- Você faz questão de trabalhar hoje?
- Sinceramente? Nenhuma...
- Que desculpa a gente daria para não ter vindo?
- Que não estávamos a fim...
- Eu digo que estava resfriada...e você... você está com dor-de-barriga. Que tal?
- Não pode ser o contrário?
- Vamos embora daqui? Vamos andar de carro... não quero trabalhar hoje.
- Esse tempo está bom pra ir à praia – Falei irônico.
- Acho bom. Gosto de ficar olhando as ondas quando está chovendo.

Quando uma mulher não consegue o que quer com um sorriso, é inevitável que o faça com seu choro. E fomos ver submarinos, auto-dispensados do trabalho, sem desculpa encontrada. Já era início da noite quando estacionamos de frente para a areia, sobre o arremedo de calçada, em uma praia tão vazia que até mesmo os tatuís já tinham se recolhido para tomar toddy quente com bolachas. Me contou algumas histórias com sua voz de língua presa, brigando com o aparelho dentário. Por curiosidade, perguntei se era removível. Ela o retirou, criando com a saliva uma imitação do bondinho do Pão-de-Acúcar. Tudo nela é fantástico, até sua baba. E apesar de um dente acavalado sobre o outro, eu gostava demais do seu sorriso. Pequenos defeitos fazem mulheres perfeitas.

Quando era bem mais novo, na idade dos doze, sonhava com beijos em garotas da minha escola. E pensava em voz baixa "ainda bem que não é sonho.. está acontecendo de verdade". Por ironia, acordava logo em seguida, com os lençois opulados e uma frustração cheirando à água sanitária. Tinha medo de ser o mesmo caso agora. Voltei à realidade com ela olhando por sobre o ombro direito, procurando o pino da porta.

- Escuta, maluca... vai molhar tudo aqui dentro.
- É mesmo... desculpe... não estou pensando direito. Pra falar a verdade, estou cansada de pensar. Cansada dessa porra toda... desse filho da puta empatando a minha vida. De saco cheio de trabalhar em jornal, de só dar notícia de desgraça. De não conseguir ver a novela das oito... de ter que acordar cedo sábado de manhã pra ir na manicure... de ralar o mês inteiro pra cobrir o especial do Itaú... porra... estou cansada, só isso.

Seus olhos marejaram. E os meus também, em solidariedade. Cruzou as pernas e desamarrou os tênis dos pés. Tirou suas meias brancas de 70% algodão + 30% poliester e estalou o dedão, ignorando tudo que aprendera no curso de etiqueta da Socila. Encolheu milímetros de barriga e abriu o zíper, em movimento único e contínuo. Usou os polegares para conduzir o tecido grosso através das pernas, ficando apenas com a calcinha, da cintura para baixo. Por fim, enfiou as mãos por dentro da camiseta e soltou o sutiã, o tirando pela gola.

- Você não vem?
- Pra onde?
- Dar um mergulho.

Respondi tirando os sapatos e minha camisa, os abandonando em algum lugar do banco traseiro. Paramos lado a lado, sobre a areia molhada, esperando a primeira lambida de água nos pés, sentindo o frio como se fosse gilete nos tutanos.

- Toda novela tem um casal correndo na praia. Todo filme... isso que estou fazendo é o maior lugar comum, não acha? Queria ser menos óbvia. A água deve estar um gelo... eu tô com medo...
- Vamos juntos então. Me dá a tua mão...

Entrei no mar protegido pelo brim da calça. Na sua vez, deu pequenos pulos e alguns gritinhos – frescuras de mulher. Larguei sua mão e mergulhei por sobre uma marola. Dei um par de braçadas até que compreendesse a água fria. A louca, ou corajosa, me acompanhou, falando palavras que não escutaria nem por decreto. Parou à minha frente, com os lábios roxos. Afastei com o indicador seus cabelos do colo. Ela se permitiu ver pela transparência do tecido molhado.

Corri os olhos em seu pescoço comprido. Observei como ele descansava em suas saboneteiras, prenúncios de seios de círculos perfeitos. Logo abaixo, costelas encaixadas seqüencialmente, protuberantes e discordantes do abdômen macio. Mordi com os olhos a barriga que se completava em uma vulva de cabelos negros e pouco aparados, vários deles escapando por cima e pelos lados de sua roupa mais íntima, sustentada por elásticozinhos que brincavam nos ossos de sua virilha. Enfiei a mão em sua calcinha e a puxei para perto de mim. O pouco tecido adentrou suas carnes antes de trazê-la. Ela entreabriu as pernas, intercalando seu interesse entre seu próprio sexo e os meus olhos.

- Você está vendo ela?
- Estou sim... é linda...
- Estou te mostrando, tá vendo? Tá gostando de ver? Você é o terceiro homem pra quem me mostro. Os outros foram meu namorado e o meu ginecologista.
- É a mais linda que já ví.
- Pena que não seja para você.

Virou-me o rosto quando me aproximei.

- Sou sua amiga. Já falei. Amigos não beijam na boca.
- Queria te pedir um favor. Foda-se a nossa amizade, tá bom?
- Não... nunca... agora fiquei triste. Sua amizade é algo que quero pra sempre. Acho que é melhor voltarmos pro carro. Estou congelando.

Depois disso, ainda tive que deixá-la no Méier, levar o carro para lavar e tirar a areia do estofamento. Na hora da despedida, jurei que manteria segredo do nosso mergulho. Me deu um abraço me felicitando por ser seu melhor amigo, seguido de um tapinha nas costas, mais doloroso que um murro nos cornos. Amizade? Algumas mulheres se contentam com muito pouco.

terça-feira, novembro 09, 2004

Se eu trabalhasse no circo, eu seria o palhaço



Acho tão engraçado quando te olhas no espelho e alisas a barriga reclamando das formas. Ora, estou certo que fazes por pura chantagem, esperando elogios. E quando a blusa te abandona e seguras os seios por baixo, desejando que fossem mais firmes... da mesma forma, é quase uma ironia. Bem sabes que o que mais me agrada é a tua naturalidade. Não fosse assim eu não encheria minhas mãos de tí.
Quando andas pela casa, despreocupada das roupas, me abres um buraco no estômago, uma fome que me dá vontade de te engolir. Definitivamente, desconsidero todos os teus "agora não". Agora sim, guria. Não estava quieto no meu canto? Pois bem, não se brinca com um homem e me darás de comer.
Quando você me virou a mão na cara, confesso que quase estranhei. Afinal, já tinhas me pedido tantas vezes pra fazer exatamente aquilo. E daí se te olhei do jeito que olhei? Não é assim que gostas que eu faça com que te sintas? Então, só atendi às tuas vontades. A meu favor o teu sorriso, logo em seguida.
Por que fazes de conta que não me abrirás as pernas. Sei muito bem onde destranco tuas portas... é como uma brincadeira de fazer parecer exatamente o contrário do que se quer. Pronto. Já estás escancarada à minha frente. Agora és tu que estás com pressa. Pressa de quê? Espera um pouco... vamos jogar o jogo. Deixe que fique somente no hall de entrada, por enquanto.
Por favor, decida onde queres a minha língua. Somente as mulheres são capazes de malabarismos circenses nessas horas. Os homens são naturalmente menos contorcionistas e mais diretos ao ponto. Mas até que me esfoço para acompanhar tuas genialidades.
Confesso, já não sei o que é suór meu ou teu, língua minha ou a tua. Mas se é verdade quando dizes que sou teu dono, então tudo é meu, não faz diferença. Talvez por isso tenhas levado metade de minhas costas nas tuas unhas, em troca de uma mordida no meu ombro. Perigoso negociar contigo – tua política é muito agressiva.
Nem percebes que o cheiro do meu visco exala de dentro das tuas entranhas, enquanto descansas entreaberta, como no quadro de Coubert, dando origem ao mundo. Bom mesmo é te usar de travesseiro, e teus dedos nos meus cabelos e os meus, nos teus pelos. E dormir depois que me contas a mesma história, cada dia de um jeito diferente.
O que vai ser de tudo isto, não tenho a menor idéia. Me levaram a bola-de-cristal. Com o tempo somos só um saco de lembranças e um cheque especial estourado no banco Itaú. O que nos mata é a nossa própria vida. Inimigo mais indestrutível este, não acha? Mas o que nos salva é a vida do outro. Tu és a minha fortaleza e quando te distrais, me escondo dentro de tí. Viver para sí próprio não faz o menor sentido. Acho que só sou quando tu estás.

segunda-feira, novembro 08, 2004

O Herói desta semana e de outras tantas



Depois de deixar para trás uma fileira de negões de Camarões, Romário comemora o seu gol de biquinho, no canto do goleiro, na Copa dos EUA, 1994.

Esta semana, Romário pendura suas chuteiras da seleção brasileira. O faz em meio a um monte de críticas, comentários polêmicos e, até mesmo, um certo deboche de imprensa, torcedores, técnicos e outros jogadores.
Esse tipo de coisa me lembra aquela música do Chico Buarque. A "Geni e o Zepelin". Na canção, Geni é um tipo de puta, daquelas baratas, que por onde passa leva pedradas e bostadas na cara. Um dia, um homem fardado, dirigindo um zepelin prateado da goodyear, diz que vai mandar tudo pelos ares. A única salvação é que a prostituta da Geni se deite com ele, para apaziguá-lo de tanta raiva. De imediato, todos louvam e agradecem à salvadora da pátria por seu ato corajoso e redentor. Quando o aventureiro toma novamente a estrada, recomeça o escárnio. Definitivamente, divertido mesmo era tacar na meretriz o que estivesse mais à mão.
Não é diferente o que fazem com Romário hoje. Amargos calazans da vida o criticam pela falta de compustura, pela falta de profissionalismo. Ora, convenhamos... isso é obvio. Mas não é essa mesma displicência que faz com que o baixinho dê um toque na bola com a ponta da chuteira, com certo desdém, e saia para comemorar o gol com um sorriso moleque de quem pregou uma peça em alguém?
O mais criticado em Romário é exatamente o que fundamenta suas qualidades. Aquele jeitão marrento de quem faz as coisas parecerem fáceis. Mania de brasileiro, que ganha 240 real por mês e rí de tudo. Gente que faz a vida parecer uma novela global, menos óbvia e cretina. Romário é o herói sem caráter. Romário, tu trazes em tí as cores de todas as raças, suas malandragens boas e ruins. Roubaste o amuleto do gigante, com a mesma ciência que usaste para fazer tantos gols sobre goleiros e zagueiros, igualmente grandes. Que cessem as críticas a Romário e que seja reverenciado seu desleixo com ares de onipotência. Se nosso sorriso é banguela, pelo menos é de orelha a orelha. Romário, tu és o Macunaíma.
Romário construiu seu próprio milagre, saiu da miséria, ficou milionário jogando bola e nos levou a todos a reboque. Ele foi seu próprio santo, torto e desvirtuado, mas de graças incontestáveis. Se transformou na esperança de um povo que abriu mão de dar certo. Nos redimiu, como dizia o Nélson Rodrigues, do nosso complexo de vira-latas. Talvez tenha feito melhor ainda. Conseguiu latir mais alto, mesmo sendo um cão vagabundo. Romário, tu és o melhor amigo do homem, seja sua camisa do Vasco, Flamengo, Barcelona ou Seleção. Romário, para mim tu és um tipo de Santo.
Imagino como deve ser difícil aceitar que acabou-se o tempo das façanhas. Mas escuta, mulato: eu ainda tenho guardada na memória a curva da bola que correu do lado de fora do teu pé... como os zagueiros te perseguiram em fila, esticando o braço, querendo te agarrar pelo "onze" da camisa. E quando te colocastes à frente de todos eles, me deste uma carona para longe de frustrações ancestrais. Parece que foi ontém que paraste em frente ao goleiro, escolheste um canto e chutaste seco, no fundo das redes, todas as dúvidas que me aparecem frente às encruzilhadas. Me vingaste de muitos inimigos quando os deixastes de bunda no chão, resolutos de tua genialidade. E quando abriste os braços para comemorar, te abracei como um negro fujão a um Zumbi dos Palmares. Romário, tu és para mim um tipo de Mártir.
Romário merece um monumento na Avenida Presidente Vargas. Merece ser a própria avenida. Avenida Romário de Souza Faria. Muito mais justo que a homenagem ao ditador suicida. Merece até mais... merece ser um feriado nacional, logo após o Carnaval. É muito mais a cara do nosso povo. Romário merece, no mínimo, o nosso respeito e nossa gratidão. Obrigado, Romário.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Ao telefone com um velho conhecido



Dia desses, arrumando gavetas, encontrei cadernetas velhas, do tempo de colégio. Relí algumas, minhas notas, minha pontualidade... enfim... havia até me esquecido que ja fora bom aluno. Uma delas, a do ano de 1986, me chamou a atenção por ser a primeira com número de telefone. Demoramos para ter um em casa. Estava lá, escrito com minha letra mesmo... 254-0439. Pensei em telefonar e perguntar como estavam as coisas. Queria muito falar com minha mãe. Se fosse o meu pai que atendesse, acho que desligaria... Tomei coragem, disquei os números.

– Alô.
– Alô. Queria falar com a Elizabeth, por favor.
– Ela não pode atender agora. Você poderia ligar depois?
– Ligo sim. Mas quem está falando?
– É o Mario Guilherme. Sou filho dela.
– Oi. Você não está me reconhecendo não?
– Não. Quem está falando?
– Sou você. Sou eu mesmo que estou telefonando.
– É o Mario? É eu mesmo?
– Sim... estou telefonando pra falar com a mamãe. Ela não está?
– Olha... está... mas não seria legal falar com ela agora.
– E você... como você está?
– Ah, estou bem... você está bem, já que eu sou você mesmo e você é eu, não é? Bem, estamos bem, eu acho.
– Hoje é dia de briga ou é dia de paz aí em casa?
– Hoje está um dia normal...
– Dia de briga, não é?
– É... o de sempre...
– Que merda, cara... sinto muito.
– Sua voz é de alguem mais velho do que eu. Com quantos anos eu estou agora?
– Estamos com 33 anos.
– Caramba... e está tudo bem? Quero dizer... está todo mundo vivo, o que aconteceu da gente, de todo mundo?
– Sim... estamos todos vivos, por sorte e pela graça de Deus, eu diria... mas muita coisa mudou.
– Eu já estou casado, hein?
– Não... estamos solteiros ainda.
– Pô, mas pelo menos eu já tive alguma namorada, não é?
– Já... já tivemos sim.
– Bonita? Loira ou morena?
– Todas morenas... todas bonitas...
– Mais que uma, é?
– É... foram algumas poucas, mas todas especialíssimas. Posso te falar uma coisa, guri? Não te preocupes de esperar, não... ainda vai demorar um tempo, mas Deus vai colocar mulheres maravilhosas na tua vida... elas vão ter paciência contigo, vão te ensinar montes de coisas... Te consolarão, serão tuas melhores amigas... te darão força e colo... e vão fazer com que tua vida seja mais fácil, mais leve... e teu coração se renovará com todo o bem que elas te farão...
– Que bom... pensei que ia ficar zerado pro resto da vida... Que mais você me conta? Fala mais...
– Na verdade liguei pra falar com mamãe...
– Olha, teve um lance daqueles aqui em casa... você sabe como é, não é?
– Não queria te falar muitas coisas, para não estragar a surpresa da tua vida... porque as coisas acontecem dentro de uma lógica própria e você vai gostar muito de vivê-las. E te garanto, não vais querer trocar tua vidinha simples e comum pela de ninguém. Apenas fique tranquilo, meu querido... as coisas vão se resolver, acredite. Tudo vai ficar bem...
– Vai mesmo?
– Vai sim... presta atenção no que eu vou te dizer agora. Fique sempre do lado de mamãe, ela vai precisar de você... tudo ela faz por você, todas as coisas que enfrenta. Vocês juntos vão superar tantas coisas que se eu te falasse, você não acreditaria. E olha... sei que é difiícil... mas desculpe o papai. Sei que não dá pra entender determinadas coisas... que elas não fazem sentido nenhum... sei como teu coração se enche de revolta, de incompreensão... mas guarde perdão dentro dele porque te será de muita utilidade no futuro... E o velho vai precisar de você... e você passará a tratá-lo como um filho. A vida dá muitas voltas... e é preciso ter o coração limpo pra encontrar o passado na esquina.
– Eu não sinto raiva dele...
– Eu sei, meu querido... eu sei... continue assim.
– Mas eu tenho medo de não conseguir... você sabe... é muito difícil...
– Escuta, meu querido... coloca agora toda tua atenção em mim, porque o que vou te falar é muito importante. Você vai conseguir... Não pensa muito, não tenta entender... só respira fundo e faz como na píscina do clube. Só saia debaixo da água quando tiver chegado do outro lado.
– Mas isso me estoura os pulmões...
– Mas você vai conseguir... quero te dizer que sinto orgulho demais de tí. Tudo que sou eu devo a tua perseverança. Hoje a vida nos é bem mais fácil, meu amado. Olho para tí, na foto desta caderneta, e sinto uma inveja boa da tua força, do tempo que teu coração acreditava ser capaz de tudo. Quisera eu ser o homem que tu és e transformaria o mundo com o que eu sei hoje. Mas essa tua coragem se perdeu pelo caminho, caiu em desuso quando as coisas se acalmaram. E graças a Deus elas se acalmaram, minha criança. Mas, acredite, és capaz de tanto que se eu te contasse ririas de mim. Mas te guardo no mais profundo de meu coração e tuas lembranças me dão dignidade pra olhar no espelho e saber que muito já fiz. E por respeito a tudo que tu és, eu devo continuar sendo.
– Obrigado por ter ligado... me consola saber que as coisas vão se resolver. Se puder, liga de novo... me diz uma coisa? O Brasil ganha essa Copa?
– Não... o Zico vai perder um penalti contra a França e a gente vai ser eliminado.
– Dúvido, mentiroso! O Zico não perde penalti nunca.
– Não esquece das coisas que eu te falei... elas são mais importantes que essa Copa. A gente só vai ganhar outra em 94.
– Tá bom... liga mais tarde e a mamãe fala com você.

Mal desliguei o telefone e sentí saudades de mim mesmo.