domingo, novembro 14, 2004

Uma lembrança de chuva


Uma história para quem não tem medo de água fria, textos grandes e mulheres complicadas.

Ela entrou no carro com jeans apertados. Uma camisa branca de botão e, por baixo, uma malha hering. Pôs o cinto de segurança, atrapalhando o beijo no rosto. Seus cabelos soltos, ainda molhados, cheiravam a condicionador das Lojas Americanas. Seu batom escuro lhe dava um ar vampiresco que me abriu um rombo no estômago. Mulheres que me interessam me causam uma gastrite irresistível. Casaria naquele momento, diante de padre e testemunhas e receberia os convidados para os cumprimentos e, por perversão, chamaria seu namorado para padrinho. Acabamos tomando o rumo do jornal.

- Tá vestida de menino hoje?
- É. Em dias chuvosos me visto sempre assim. Não gostou?
- Gostei muito. Jeans apertados me dão tesão.
- Eu sei. Eu já percebí que você olha pra toda mulher que entra na redação com calça apertada. Você é muito óbvio.
- Você hoje está uma chata. O que aconteceu? Você não parecia muito bem quando me telefonou. Com essa chuva vamos chegar atrasados ao trabalho.
- Entra aqui à direita. Cara, eu estou bem. Só queria bater papo-furado e aproveitar tua carona, só isso. Que música de velho é essa?
- Summertime, com o Sam Cooke. Essa versão é boa demais.
- Eu tô vendo que você gosta. Já tocou três vezes. A fita inteira é com essa música?
- É sim. Gosto de gravar várias vezes na mesma fita para poder ouvir até enjoar. O que você gosta de escutar?
- Gosto de escutar sacanagem no pé do ouvido. Tô brincando... não fica sem graça, não... eu escuto de tudo. Só não gosto de pagode e axé music. Por isso que não vou em churrasco. Meu namorado é que adora essas porcarias. É bundinha pra cá, a dança da galinha pra lá... um saco!
- E vocês voltaram? Vão voltar?
- Não sei. Eu quero me casar. Nós já namoramos muito tempo e quero resolver logo essa situação.
- E você vai casar só pra resolver uma situação?
- O que você quer que eu faça? Acabo ficando pra titia... Você casa comigo?
- Agora! Se você quiser... com padre, testemunhas e depois ainda aperto a mão de todos os convidados. E chamaria teu namorado pra ser meu padrinho.
- Mentiroso. Vocês, homens, mentem muito.

Com todos os sinais fechados, em meia hora não havíamos chegado ao final da primeira rua. A chuva era murrinha e o tempo esfriava. Me pediu para trocar a fita. Permiti, logicamente. Resolveu sintonizar uma estação de rádio. "Música de elevador", definiu. Passaram-se cinco minutos e começou a tocar Summertime, exatamente na voz de Sam Cooke. Rimos juntos da coincidência, como somente velhos amigos fazem. Em seguida, outra canção triste como a anterior. Calou-se alguns segundos e começou a chorar, borrando a pintura do olho e avermelhando o nariz. Coloquei a mão direita sobre sua perna, abandonando o câmbio do carro. Não falei nada ou olhei para seu rosto. Só escutávamos o barulho da borracha que se esfregava irritante no pára-brisas. Espalmou sua mão sobre a minha e nossos dedos se entrelaçaram em abraços. Começamos a brincar, um tentando prender o polegar do outro. Sorríamos quando alguém vencia o jogo.

- Você é bobo. Um bobalhão.
- Você também é uma boboca.
- Você engordou, sabia?
- Uns dois quilos, eu acho. Me beija a boca?
- Não posso. Sou sua amiga e amigos não se beijam na boca. Olha, andou o trânsito...

A locutora da rádio informou, com voz de veludo: "(...)quatro e vinte. Você escutou, na Antena Um Fm, Vendaval com Ed Motta, Summertime com Sam Cooke, For my Lover com Tracy Chapman e Coisas da Vida com Rita Lee. A cada hora, cinqüenta e quatro minutos de música".

O céu estava escuro como noite. O jornal, próximo. Tirou toda a maquiagem e planejou dizer que estava gripada, caso alguém perguntasse de sua cara inchada. Parei o carro na Rua Irineu Marinho, esperando uma vaga para estacionar. Passaram-se mais alguns minutos até que perguntasse:

- Você faz questão de trabalhar hoje?
- Sinceramente? Nenhuma...
- Que desculpa a gente daria para não ter vindo?
- Que não estávamos a fim...
- Eu digo que estava resfriada...e você... você está com dor-de-barriga. Que tal?
- Não pode ser o contrário?
- Vamos embora daqui? Vamos andar de carro... não quero trabalhar hoje.
- Esse tempo está bom pra ir à praia – Falei irônico.
- Acho bom. Gosto de ficar olhando as ondas quando está chovendo.

Quando uma mulher não consegue o que quer com um sorriso, é inevitável que o faça com seu choro. E fomos ver submarinos, auto-dispensados do trabalho, sem desculpa encontrada. Já era início da noite quando estacionamos de frente para a areia, sobre o arremedo de calçada, em uma praia tão vazia que até mesmo os tatuís já tinham se recolhido para tomar toddy quente com bolachas. Me contou algumas histórias com sua voz de língua presa, brigando com o aparelho dentário. Por curiosidade, perguntei se era removível. Ela o retirou, criando com a saliva uma imitação do bondinho do Pão-de-Acúcar. Tudo nela é fantástico, até sua baba. E apesar de um dente acavalado sobre o outro, eu gostava demais do seu sorriso. Pequenos defeitos fazem mulheres perfeitas.

Quando era bem mais novo, na idade dos doze, sonhava com beijos em garotas da minha escola. E pensava em voz baixa "ainda bem que não é sonho.. está acontecendo de verdade". Por ironia, acordava logo em seguida, com os lençois opulados e uma frustração cheirando à água sanitária. Tinha medo de ser o mesmo caso agora. Voltei à realidade com ela olhando por sobre o ombro direito, procurando o pino da porta.

- Escuta, maluca... vai molhar tudo aqui dentro.
- É mesmo... desculpe... não estou pensando direito. Pra falar a verdade, estou cansada de pensar. Cansada dessa porra toda... desse filho da puta empatando a minha vida. De saco cheio de trabalhar em jornal, de só dar notícia de desgraça. De não conseguir ver a novela das oito... de ter que acordar cedo sábado de manhã pra ir na manicure... de ralar o mês inteiro pra cobrir o especial do Itaú... porra... estou cansada, só isso.

Seus olhos marejaram. E os meus também, em solidariedade. Cruzou as pernas e desamarrou os tênis dos pés. Tirou suas meias brancas de 70% algodão + 30% poliester e estalou o dedão, ignorando tudo que aprendera no curso de etiqueta da Socila. Encolheu milímetros de barriga e abriu o zíper, em movimento único e contínuo. Usou os polegares para conduzir o tecido grosso através das pernas, ficando apenas com a calcinha, da cintura para baixo. Por fim, enfiou as mãos por dentro da camiseta e soltou o sutiã, o tirando pela gola.

- Você não vem?
- Pra onde?
- Dar um mergulho.

Respondi tirando os sapatos e minha camisa, os abandonando em algum lugar do banco traseiro. Paramos lado a lado, sobre a areia molhada, esperando a primeira lambida de água nos pés, sentindo o frio como se fosse gilete nos tutanos.

- Toda novela tem um casal correndo na praia. Todo filme... isso que estou fazendo é o maior lugar comum, não acha? Queria ser menos óbvia. A água deve estar um gelo... eu tô com medo...
- Vamos juntos então. Me dá a tua mão...

Entrei no mar protegido pelo brim da calça. Na sua vez, deu pequenos pulos e alguns gritinhos – frescuras de mulher. Larguei sua mão e mergulhei por sobre uma marola. Dei um par de braçadas até que compreendesse a água fria. A louca, ou corajosa, me acompanhou, falando palavras que não escutaria nem por decreto. Parou à minha frente, com os lábios roxos. Afastei com o indicador seus cabelos do colo. Ela se permitiu ver pela transparência do tecido molhado.

Corri os olhos em seu pescoço comprido. Observei como ele descansava em suas saboneteiras, prenúncios de seios de círculos perfeitos. Logo abaixo, costelas encaixadas seqüencialmente, protuberantes e discordantes do abdômen macio. Mordi com os olhos a barriga que se completava em uma vulva de cabelos negros e pouco aparados, vários deles escapando por cima e pelos lados de sua roupa mais íntima, sustentada por elásticozinhos que brincavam nos ossos de sua virilha. Enfiei a mão em sua calcinha e a puxei para perto de mim. O pouco tecido adentrou suas carnes antes de trazê-la. Ela entreabriu as pernas, intercalando seu interesse entre seu próprio sexo e os meus olhos.

- Você está vendo ela?
- Estou sim... é linda...
- Estou te mostrando, tá vendo? Tá gostando de ver? Você é o terceiro homem pra quem me mostro. Os outros foram meu namorado e o meu ginecologista.
- É a mais linda que já ví.
- Pena que não seja para você.

Virou-me o rosto quando me aproximei.

- Sou sua amiga. Já falei. Amigos não beijam na boca.
- Queria te pedir um favor. Foda-se a nossa amizade, tá bom?
- Não... nunca... agora fiquei triste. Sua amizade é algo que quero pra sempre. Acho que é melhor voltarmos pro carro. Estou congelando.

Depois disso, ainda tive que deixá-la no Méier, levar o carro para lavar e tirar a areia do estofamento. Na hora da despedida, jurei que manteria segredo do nosso mergulho. Me deu um abraço me felicitando por ser seu melhor amigo, seguido de um tapinha nas costas, mais doloroso que um murro nos cornos. Amizade? Algumas mulheres se contentam com muito pouco.