sábado, novembro 25, 2006

Deixa o homem trabalhar...

Dr. Otaviano tinha uma cadela vira-latas chamada Scarlet Ohara, um desses nomes boçais, da mesma família que Odete ou Janete. Menos comum, mas do mesmo mau gosto. De qualquer forma combinava com o bicho e, na verdade, a cachorra era mais da casa, da faxineira, da esposa, do que dele mesmo.

Às vezes fazia o favor de levá-la para passear perto de casa para que cagasse ou mijasse no patrimônio alheio. Scarlet preferia calotas de carros, sobretudo os vermelhos. Sua cadela, diferentemente dos outros cães, enxergava cores.

Odiava dias como aquele, abafados e úmidos, que por algum motivo veterinário, faziam o bicho urinar baldes. “Os animais são tão cheios de mistérios”, filosofou. Mas, sem dúvida, era melhor perder quinze minutos na rua do que limpar toda a cozinha. Fez o favor de encoleirar o bicho e dar uma volta. Desceu dezoito andares até a portaria, pelo elevador de serviço.

Na esquina, a filha da vizinha namorava um dos marginais da classe média tijucana. “Não ter uma filha é uma sorte”, concluiu. Tentou se apressar em voltar logo e assistir à merda do telejornal. Mas a maldita cadela não parava de jorrar em cada poste, hidrante ou carro que encontrava. “Passa um ônibus aqui agora e jogo essa filha-da-puta debaixo da roda. Deus me perdoe.”

Como o mundo e a subliteratura são cheios de coincidências, ao retornar ao prédio, a filha da vizinha também esperava o elevador.

– Boa noite.
– Boa noite.
– Qual seu andar?
– Trêzimo, por favor.
– Ah, sim. O treze. Décimo terceiro.
– Isso. Décimo terceiro.
– Número da sorte.
– É o que dizem, né?
– Vi você com seu namorado, agora na rua.
– É. Eu também te vi... Não é namorado não. Só amigo.
– Ah, claro.
– Não gosto dele. Ele que gosta de mim.

A cadela deu um latido, atrapalhando a intelectualidade do assunto.

– Cala a boca, Scarlet.
– Scarlet?
– Foi minha mulher que colocou o nome.
– Por causa do filme. Do vento Levou, não é isso?
– Esse mesmo. Minha mulher adora... na verdade, não gosto muito.
– Chegou. Tchau.
– Tchau.

A garota saiu e Otaviano deu uma bufada com som de risada, achando engraçado o bate-papo. “Quantos anos tem essa garota? Tão nova e com uns peitões assim. E sem sutiã. Será que os pais não enxergam isso? Se fosse minha filha não saia de casa assim não.”

– Calada, Scarlet!

Alguns dias depois e Otaviano precisou cumprir seu dever cívico de votar em um dos candidatos à presidência. Calçou os mocasins e partiu para a escola pública, a três ou quatro quarteirões de sua casa. No trêzimo andar, o elevador parou.

– Oi, bom dia, seu Otavio.
– É Otaviano. Bom dia.
– Não vai levar o cachorro não?
– Ela vota em outra zona, diferente da minha.
– Hahaha. Escuta, seu Otaviano. É Lula, né? Vai votar no Lula, né?
– Não. Vou votar no Serra.
– Sério? Meus pais foram até Minas só pra votar no Lula. Não quiseram nem justificar. Fizeram questão de ir lá votar.
– Mudando de assunto, qual é o seu nome que eu não sei ainda?
– Maristela, mas todo mundo me chama de Mari. Eu tô indo votar também.
– Você vota onde?
– No Pedro II
– Em frente ao Colégio Militar?
– Lá mesmo. O senhor também?
– Sim. Vou andando até lá.
– Eu também.
– Mas você já vota? Desculpe, quantos anos você tem?
– Dezessete.
– Nossa, eu poderia ser seu pai.
– Se fosse meu pai, votaria no Lula e não no careca do Serra. Que homem feio, parece o cara da família Adams.
– Quem? Família de quem?
– Deixa pra lá. É um filme. E você tem quantos anos?
– Cinqüenta. Pois é, eu poderia ser seu pai.
– Meu pai tem menos.
– Então poderia ser teu avô.
– Hahaha. Não. Cinco anos só de diferença. Meu pai tem quarenta e cinco.

Na zona eleitoral, Otaviano mostrou a carteira de motorista. Rapidamente digitou o 45 nas teclas da urna eletrônica, sabendo que seria em vão. “ Por que fui estudar? Esse analfabeto vai ganhar essa eleição e ser presidente. País de merda. Mineiros filhos-da-puta.”, pensou, lembrando dos vizinhos. “Gostosa... dava-lhe uma pirocada”, pensou lembrando da filha deles. Falando nisso, a peituda esperava pelo cinquentão na calçada.

– Agora vou almoçar.
– Bom, eu também. Minha esposa está trabalhando. Ela é jornalista.
– Vai comer na rua também?
– É, sei lá.
– Vou comer no Mac Donald´s. Tá afim?
– Bom, pode ser...

Por alguns momentos sentiu vontade de ser pai. De poder fazer o mesmo com sua filha. Mas aceitava resoluto a monotonia e a distancia da vida conjugal de alguém que é casado com uma jornalista. Em outros momentos sentia um jato de sangue preenchendo seus corpos cavernosos toda vez que olhava dentro do decote da camiseta branca da rapariga. “Hoje ela está com sutiã. Não vai dar pra ver nada.”, pensava enquanto tentava manter a integridade e correção política coerentes à sua idade. “Socava-lhe a rola”, concluía, no final das contas.

– Número quatro com suco de laranja.
– O mesmo pra mim.
– Eu não bebo refrigerante. Para manter a forma.
– Na sua idade, podemos cometer as maiores loucuras...
– É mesmo?
– É... como comer chocolate sem culpa, tomar sorvete, essas coisas, sem engordar.
– Vai voltar pra casa depois daqui?
– É. Assistir televisão. Qualquer coisa que não seja o Faustão.
– Ah, eu gosto do Faustão. Quer ir lá pra casa?
– Como?
– Eu aluguei um filme que não vi ainda. Se quiser assistir comigo, tudo bem.
– Bom, eu nem conheço seus pais. Cruzei poucas vezes com eles no elevador. Será que eles não ficariam preocupados se algum estranho fosse na casa de vocês sem eles saberem?
– Não. Eles confiam em mim.
– Desculpe. Melhor não. Mas eu agradeço pelo convite.

Otaviano até inventou uma desculpa para não tomar o mesmo caminho para o prédio. Os pensamentos maldosos que invadiram sua mente durariam até o segundo mandato da cavalgadura presidencial e definitivamente concluiu que basta uma ocasião para fazer o ladrão.