sexta-feira, novembro 05, 2004

Ao telefone com um velho conhecido



Dia desses, arrumando gavetas, encontrei cadernetas velhas, do tempo de colégio. Relí algumas, minhas notas, minha pontualidade... enfim... havia até me esquecido que ja fora bom aluno. Uma delas, a do ano de 1986, me chamou a atenção por ser a primeira com número de telefone. Demoramos para ter um em casa. Estava lá, escrito com minha letra mesmo... 254-0439. Pensei em telefonar e perguntar como estavam as coisas. Queria muito falar com minha mãe. Se fosse o meu pai que atendesse, acho que desligaria... Tomei coragem, disquei os números.

– Alô.
– Alô. Queria falar com a Elizabeth, por favor.
– Ela não pode atender agora. Você poderia ligar depois?
– Ligo sim. Mas quem está falando?
– É o Mario Guilherme. Sou filho dela.
– Oi. Você não está me reconhecendo não?
– Não. Quem está falando?
– Sou você. Sou eu mesmo que estou telefonando.
– É o Mario? É eu mesmo?
– Sim... estou telefonando pra falar com a mamãe. Ela não está?
– Olha... está... mas não seria legal falar com ela agora.
– E você... como você está?
– Ah, estou bem... você está bem, já que eu sou você mesmo e você é eu, não é? Bem, estamos bem, eu acho.
– Hoje é dia de briga ou é dia de paz aí em casa?
– Hoje está um dia normal...
– Dia de briga, não é?
– É... o de sempre...
– Que merda, cara... sinto muito.
– Sua voz é de alguem mais velho do que eu. Com quantos anos eu estou agora?
– Estamos com 33 anos.
– Caramba... e está tudo bem? Quero dizer... está todo mundo vivo, o que aconteceu da gente, de todo mundo?
– Sim... estamos todos vivos, por sorte e pela graça de Deus, eu diria... mas muita coisa mudou.
– Eu já estou casado, hein?
– Não... estamos solteiros ainda.
– Pô, mas pelo menos eu já tive alguma namorada, não é?
– Já... já tivemos sim.
– Bonita? Loira ou morena?
– Todas morenas... todas bonitas...
– Mais que uma, é?
– É... foram algumas poucas, mas todas especialíssimas. Posso te falar uma coisa, guri? Não te preocupes de esperar, não... ainda vai demorar um tempo, mas Deus vai colocar mulheres maravilhosas na tua vida... elas vão ter paciência contigo, vão te ensinar montes de coisas... Te consolarão, serão tuas melhores amigas... te darão força e colo... e vão fazer com que tua vida seja mais fácil, mais leve... e teu coração se renovará com todo o bem que elas te farão...
– Que bom... pensei que ia ficar zerado pro resto da vida... Que mais você me conta? Fala mais...
– Na verdade liguei pra falar com mamãe...
– Olha, teve um lance daqueles aqui em casa... você sabe como é, não é?
– Não queria te falar muitas coisas, para não estragar a surpresa da tua vida... porque as coisas acontecem dentro de uma lógica própria e você vai gostar muito de vivê-las. E te garanto, não vais querer trocar tua vidinha simples e comum pela de ninguém. Apenas fique tranquilo, meu querido... as coisas vão se resolver, acredite. Tudo vai ficar bem...
– Vai mesmo?
– Vai sim... presta atenção no que eu vou te dizer agora. Fique sempre do lado de mamãe, ela vai precisar de você... tudo ela faz por você, todas as coisas que enfrenta. Vocês juntos vão superar tantas coisas que se eu te falasse, você não acreditaria. E olha... sei que é difiícil... mas desculpe o papai. Sei que não dá pra entender determinadas coisas... que elas não fazem sentido nenhum... sei como teu coração se enche de revolta, de incompreensão... mas guarde perdão dentro dele porque te será de muita utilidade no futuro... E o velho vai precisar de você... e você passará a tratá-lo como um filho. A vida dá muitas voltas... e é preciso ter o coração limpo pra encontrar o passado na esquina.
– Eu não sinto raiva dele...
– Eu sei, meu querido... eu sei... continue assim.
– Mas eu tenho medo de não conseguir... você sabe... é muito difícil...
– Escuta, meu querido... coloca agora toda tua atenção em mim, porque o que vou te falar é muito importante. Você vai conseguir... Não pensa muito, não tenta entender... só respira fundo e faz como na píscina do clube. Só saia debaixo da água quando tiver chegado do outro lado.
– Mas isso me estoura os pulmões...
– Mas você vai conseguir... quero te dizer que sinto orgulho demais de tí. Tudo que sou eu devo a tua perseverança. Hoje a vida nos é bem mais fácil, meu amado. Olho para tí, na foto desta caderneta, e sinto uma inveja boa da tua força, do tempo que teu coração acreditava ser capaz de tudo. Quisera eu ser o homem que tu és e transformaria o mundo com o que eu sei hoje. Mas essa tua coragem se perdeu pelo caminho, caiu em desuso quando as coisas se acalmaram. E graças a Deus elas se acalmaram, minha criança. Mas, acredite, és capaz de tanto que se eu te contasse ririas de mim. Mas te guardo no mais profundo de meu coração e tuas lembranças me dão dignidade pra olhar no espelho e saber que muito já fiz. E por respeito a tudo que tu és, eu devo continuar sendo.
– Obrigado por ter ligado... me consola saber que as coisas vão se resolver. Se puder, liga de novo... me diz uma coisa? O Brasil ganha essa Copa?
– Não... o Zico vai perder um penalti contra a França e a gente vai ser eliminado.
– Dúvido, mentiroso! O Zico não perde penalti nunca.
– Não esquece das coisas que eu te falei... elas são mais importantes que essa Copa. A gente só vai ganhar outra em 94.
– Tá bom... liga mais tarde e a mamãe fala com você.

Mal desliguei o telefone e sentí saudades de mim mesmo.